terça-feira, 29 de junho de 2010

É bom lembrar: a Copa é em África

Deu na coluna de Monica Bergamo que o chefe da delegação brasileira [e presidente do Corinthians], Andres Sanchez, andou reclamando da infra-estrutura do Ellis Park, estádio onde o Brasil jogou na estreia contra a Coreia do Norte e ontem contra o Chile. Sanchez disse que é igual a um "estádio pequeno do interior. Até água quente chegou a faltar no vestiário dos brasileiros".

Ora, ora... façam-me uma garapa! "Falta de água quente"? Vamos dar um banho de realidade nesse senhor. Sequer tem água encanada em Soweto! Água potável pra beber e cozinhar; água encanada no chuveiro é recurso raro, rarrísimo, em solo africano. Em Angola, paga-se até 150 dólares por um garrafão de água mineral de 20 litros - desses que aqui no Brasil a gente compra na esquina de casa por R$ 4 com direito a entregador [delivery] e lacre de segurança. Foram várias as vezes que tomei banho de balde em Luanda. O ano: 2007. Ou se preferir: ontem. Várias vezes. E era banho regrado: apenas um balde - pra dividir pro banho da manhã e da noite. Mesmo morando em Talatona [bairro "chique" construído pela Odebrecht para funcionários do governo e diversos imigrantes] completamente afastado da bagaça que se vê no centro e arredores de Luanda [bairro asfaltado, com iluminação nas ruas, shopping center, cinema, Bob's etc] faltava água na torneira. Ahhhhh, faltava. Que nem loteria. Tinha internet wireless, mas faltava água. E água quente durou gloriosamente até o dia que o aquecedor parou de funcionar. A manutenção não foi possível porque não conseguimos encontrar mão de obra capacitada para consertar o aquecedor da casa. Chamamos a assistência, e o funcionário, ao invés de dar jeito no aquecedor, misteriosamente desmontou o liquidificador. É... o liquidificador, podem acreditar. Se você não entendeu, o que tô dizendo é o seguinte: o funcionário angolano da assistencia técnica não sabia diferenciar um liquidificador do aquecedor.

Antes que alguém se atreva ou dê uma risada escrota, não se trata de burrice. A dificuldade é fruto da condição excludente imposta pela realidade africana em muitos países assolados durante décadas, séculos, por conflito armado, guerra civil, genocídio, malária, aids, fome etc. É bom lembrar que África é aquele continente que é mais barato deixar morrer. Fernando Meireles fala muito bem disso em O jardineiro fiel. Vale a pena ler também Os sete sapatos sujos, de Mia Couto. E assim tomamos banho frio dias e dias dando graças a Deus quando tinha água na torneira.

Quando vi a triste notícia da morte da bisneta de Mandela num acidente de carro imediatamente lembrei de seo Domingos, um dos motoristas da primeira casa onde morei em Luanda. Aqui ao meu redor, em Salvador, cidade que passei a chamar de Pequena África quando voltei de Angola, dada a semelhança do jeito e tipo físico do povo daqui com os de lá, vi muita gente [amigos e conhecidos] comentarem abismados: "como permitiram que um motorista bêbado levasse a bisneta do homem mais importante da África do Sul?". Outros disseram: "Foi uma falha primária". Fala isso quem nunca pisou em África. Seo Domingos, como eu dizia, motorista contratado para nos levar diariamente ao trabalho [éramos quatro na mesma casa] não sabia dar ré. É... ele não conseguia tirar o carro da garagem de ré. A gente já deixava o carro numa posição estratégica que não fosse necessário fazer nenhum tipo de manobra a não ser engatar a primeira e ir pra frente em linha reta.

Seo Domingos é um angolano simpático do Lobito, se não me falha a memória, uma província mais ao Sul de Luanda. Fala português impecável, um pouco de francês e dois dialetos locais. Aprendeu por força da vida, sem nunca ter ido à escola. Se mudou com a família [ou melhor: com o que restou dela] para fugir da guerra. Foi um dos que me ensinou um pouco de kimbundo e o que é ser africano ao me contar um pouco da sua história de vida. Se dizia excelente atirador. Especialidade: BM21, aquela arma do Rambo que dispara não sei quantos tiros de uma vez só em movimento giratório. Como a maioria dos angolanos, matou muitos, sobreviveu a vários e viu outros tantos serem cruelmente abatidos. Falava com a gente sempre com os olhos apontados para o chão. Pedia desculpa por qualquer coisa, por mais que não fosse necessário. Pai zeloso, marido companheiro. Driblava a fome nos musseques como motorista de estrangeiros que estavam no país a convite da integração e paz nacional. Voltava todos os dias pra casa a pé ou de candonga. Mora debaixo de telhas de zinco, sem água encanada, sem iluminação, sem a certeza de três refeições por dia. Resistiu ao paludismo algumas tantas vezes. Chegava ao trabalho sempre com traje impecável.

Verdade que a África do Sul, no quesito desenvolvimento, está alguns passos a frente de Angola. África do Sul, capital econômica de África. África do Sul, de Mandela e do Bispo Tutu. África do Sul turística, dos sáfaris, das vinícolas, das praias de surfe e dos hotéis sete estrelas, com cidades encatadoras como Cape Town e Jeffrey's Bay. Mas fato é que o povão [como dizemos aqui na Bahia] ainda sofre [e como!] com questões básicas bem precárias que nem se comparam a pior cidade do interior do Brasil, viu sr. Sanchez? África é estado de calamidade permanente. Na África do Sul, sobretudo para os que vieram de Moçambique e do Zimbábue em busca de melhores condições de vida, inchando completamente Joanesburgo e arredores. Caos generalizado com direito a moçambicanos queimados vivos em motins xenofóbicos em Joanesburgo. Repito: o ano era 2007. Ou ontem, se preferirem.

Problema é que a gente não consegue ver quase nada de África nessa Copa. Malmente vemos africanos nos estádios. Ainda não vi imagens do vaivém dos nativos nas ruas, as mulheres e seus panos coloridos, cabelos trançados, os prédios futurísticos em contraste com as mamuílas, as crianças empenduradas nas costas das mães, as comidas típicas, a insegurança [Joanesburgo é uma das cidades do mundo com maior frota de carro blindado]. Nada disso e muito mais - a gente não consegue ver. Ontem, passando pela Vasco da Gama pouco antes do jogo do Brasil, vi uma escadinha que vai dar lá na Baixa da Égua, daquelas escadas que é preciso passo firme e equilíbrio pra escalar, toda pintada, degrau por degrau, de verde e amarelo. Quem pintou aquilo ali é brasileiro de verdade. Não foi a prefeitura nem o decorador de ambientes. E lembro logo de meu pai, não pode ver um abacate. Sempre diz: "queria provar aquele sanduíche com abacate frito que os mexicanos comem nas ruas". É uma das imagens que o marcou na Copa de 70. Para sempre...


Treino da Seleção Brasileira hoje. Imagem: Rede Globo/Reprodução

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2 Comments:

Blogger Ari said...

CLAP-CLAP-CLAP-CLAP!!!
Ah, muleka!!! Jogou duro e muito bem!

29 junho, 2010  
Blogger Junior said...

PORRA!!! demorou mas saiu um mil!!! SHOW Tassita! Ó... esse cara que reclamou, não é aquele que na foto oficial com o Lula e D. Marisa Letícia, está "empurrando" o grandalhão do Teixeira? Sei pai tem razão...

29 junho, 2010  

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